Há
uns anos escrevi-lhe uma carta. E disse que nunca mais falaria sobre isso no
blog. Depois dessa carta fui convidada algumas vezes para falar dele, de nós,
na televisão. Mas eu nunca quis. Principalmente porque não gosto nada de
rótulos e o meu filho é muito mais do que o que lhe aconteceu e o seu problema
físico. A identidade dele não é essa.
Mas também é essa. E fingir que não é também não é a solução.
Mas prometi que não falava mais disto aqui, até que recebo dois
mails, de duas estórias semelhantes às do meu filho, uma menina que teve um avc
48 horas depois de nascer e outro in útero.
E percebi que há 8 anos foi caso muito, muito raro mas que
depois dele já apareceram vários e é preciso falar das coisas. É preciso
mostrar às pessoas que não estão sozinhas nas suas lutas. E que cada tem as
suas lutas. E que difíceis são de travar.
Acho que foi o meu a-ha
moment.
A Maria não está só. E outras Marias não estão sós.
Esta mulher que se
tornou mãe há 12 meses. Uma mãe que teve uma gravidez de sonho e que às 36
semanas de gestação levou uma facada no coração, com uma cesariana de urgência
e com o diagnóstico de AVC isquémico intra-uterino. Uma mãe que está há 12
meses a aprender a viver um dia de cada vez, a aprender a não viver ansiosa com
o futuro e a aprender a festejar cada "pequena" batalha ganha pelo
seu pequeno tesouro.
Esta mãe está cansada
física e psicologicamente e espera conseguir aguentar sempre este ritmo de
fisioterapias, terapias ocupacionais, trabalho, casa, casamento… Este ritmo que
eu aguento há 8 anos.
Passa muito tempo a pensar na vida, na sua
vida, na sua sorte e revolta-se, revolta-se muito. E não sabe para onde se
virar. Sente que não há muitas pessoas que compreendam tudo o que envolve esta
dor e esta angústia atroz.
Os amigos são fundamentais,
diz, e ajudam-nos muito, mas tentam confortá-los sempre com um "vais ver
que vai correr tudo bem..." e isso só não ajuda, não ajuda mesmo nada. O
futuro é uma incerteza, ela sabe. Felizmente o pequeno tesouro dela, a sua
vida, já se senta - e chegaram a dizer-lhes que podia não se conseguir sentar
nunca...
Esta mãe precisa que lhe
garantam aquilo que ninguém lhe consegue garantir. E pensa: Será que o seu filho vai
conseguir segurar no guiador de uma bicicleta? Será que vai conseguir dar aos
braços para nadar? Como vai cortar o bifinho e ajudar a empurrar os baguinhos
de arroz para o garfo? Será que vai conseguir falar?... E assim como se de um
segredo se tratasse lá me diz que tem muito medo que os meninos venham a gozar
com ele e a chamar-lhe coisas... como "deficiente"...
Meu querido A.,
Queria dizer-te que esta noite dormi muito mal, com muita
vontade de chorar.
Faz agora precisamente 5 anos que tiveste o AVC, devido à malfadada
artereopatia intracraniana (transitória), nome pomposo que significa que
nasceste com uma artéria no cérebro mais estreitinha do que o normal e naquele
dia não foi suficiente. E que nunca saberemos porquê.
Foram tempos difíceis, principalmente quando tiveste internado em Santa Maria com um diagnóstico horroroso, que
felizmente não se veio a confirmar (aquele que dizia que terias avcs sucessivos
- Moyamoya, outro nome complicado, nome de doença que não conhecia). Vários
avcs sucessivos que terminariam com a tua morte.
Sabes que sou uma mãe à italiana: dou muitos mimos mas berro muito. Dói-me até
hoje saber que me zanguei contigo naquela manhã porque pensei que estavas a
fazer ronha para te levantares. Queria tanto voltar atrás.
Estiveram tantas horas para descobrir o que tinhas, horas que teriam sido
essenciais. Mas não podemos culpar ninguém, sabes que o teu caso é raro. Não me
esqueço que chegaram a perguntar-nos se te tínhamos dado bombons com licor ou
se era possível teres ingerido alguma bebida alcoólica.
Foi estranho a nossa vida continuar mas nunca mais vai ser a mesma. Tinhas 3
anos e o mano 7 meses. Foi estranho as pessoas confundirem ter um avc (problema
no cérebro) com problema ou doença mental. Sempre sentimos que ficava a malvada
dúvida no ar e eu sentia a necessidade (eu queria, eu fazia questão) de dizer
que felizmente a tua parte cognitiva estava intacta, que o teu problema, a tua
sequela era "apenas" física, que o teu bracinho e mão não funcionavam
mais e o mais certo é não funcionarem nunca mais. As pessoas não sabiam o que
dizer-nos e invariavelmente saía-lhes um "ele ainda é muito novo e vão ver
que ele vai recuperar". Foi estranho perceber que as perguntas sobre ti
começaram a rarear (salvo algumas excepções), como se o teu problema se tivesse
resolvido. Às vezes apetecia-me dizer-lhes que se tivesses dito um problema no
coração e tivesses sido operado, por mais grave que pudesse ter sido, havia
essa hipótese de recuperação total. Neste caso não.
Por outro lado gostava que nos estivessem esquecido para também nós nos podermos tentar esquecer.
Levei-te ao meu antigo professor e mais tarde colega Eduardo Sá. Queria ouvir
da boca de alguém competente o que se passaria dentro de ti. Eu conseguia
chegar a outros mas a ti não. Ser tua mãe não ajudava a tarefa da
psicoterapeuta.
Ele deu-nos os parabéns, disse que eras muito feliz. Mas para não esquecermos
nunca que tinhas uma "ferida" que iria demorar a cicatrizar. Que na
altura em que as crianças pensam que os pais são super-heróis e que as vão
salvar de tudo isso não aconteceu. Que estiveste muito perto da morte e olhaste
para ela de frente. Mesmo, mesmo de frente.
Nós não somos nada benevolentes nem pais-galinha, nem te mimamos demais. Até
somos muito exigentes contigo.
Ficaste com o problema no braço e com dificuldades de concentração, mas também
nunca saberemos se foi disso ou não.
Tomas medicação e até ao fim da vida uma carteirinha de aspegic logo de manhã.
E fazes fisioterapia até hoje. E vais continuar a fazer.
E tens muito boas notas e adoras desporto. Ganhaste uma medalha de ouro numa
prova de corta-mato adaptada.mas não podes jogar ténis, não podes andar de bicicleta sem ser com rodinhas, não consegues cortar o bife e precisas que seja eu a cortar.
Estas são as palavras que
nunca te escrevi.
Amo-te de paixão, embora os nossos feitios colidam algumas vezes e que seja
preciso uma paciência de Jó para te aturar, o que nem sempre tenho e tu sabes.
Gosto de te saber feliz.
Vivo (vivemos) a vida normalmente, 8 anos depois.
Mas hoje dormi tão mal e sonhei contigo. Tu e eu. Tu nos meus braços.
E de vez em quando vou tendo estes sonhos ou pesadelos. Pronúncio de tantas dores que ainda estão para vir.
Estas são as palavras que nunca lhe disse.
Assim, desta maneira não. Mas sei que ele sabe, sei que
sente, espero tanto que sinta, que é isto que eu sinto e lhe quero dizer.
25 comentários:
Sorry! Estou grávida do segundo e não consigo ler este post... talvez mais tarde!...
Oh Sofia, nem sei o que vos dizer. Admiro-vos.
Um beijo enorme de coração e no coração.
Estou aqui em lágrimas.
<3
Ai Sofia, que arrepio! Não consigo imaginar...
Um grande beijinho. Enorme! <3<3
De repente fica-se sem palavras... Um texto muito bonito e comovente, acima de tudo porque é verdadeiro.
Ai... Doí tanto ouvir a tua história! Doí ainda mais não te conhecer, em carne e osso, para te abraçar! Os filhos são seres maravilhosos que quando nascem trazem com eles todas as promessas. Há que os ajudar a concretizar os sonhos deles, guardando para nós as nossas expectativas... mas tu guardas em ti a dor de viver com a dor do teu filho, que não se foi com nenhuma cirurgia, uma dor que ficou!
À laia de comentário do post anterior digo-te que hoje passei o dia num lamento silencioso, porque a minha C. teve a 6ª otite este ano, porque está sempre doente, porque blábláblá… e depois deparo-me com este teu post.
Como fui egoísta durante, pelo menos, o dia de hoje. Eu que conheço a dor, a minha, mas reconheço pouco a dos outros, porque a minha parece sempre maior, gigantesca!
Gosto de te ler! Um beijinho apertado por um abraço.
Inês
http://someotrainbow.blogspot.pt/
Ai... Doí tanto ouvir a tua história! Doí ainda mais não te conhecer, em carne e osso, para te abraçar! Os filhos são seres maravilhosos que quando nascem trazem com eles todas as promessas. Há que os ajudar a concretizar os sonhos deles, guardando para nós as nossas expectativas... mas tu guardas em ti a dor de viver com a dor do teu filho, que não se foi com nenhuma cirurgia, uma dor que ficou!
À laia de comentário do post anterior digo-te que hoje passei o dia num lamento silencioso, porque a minha C. teve a 6ª otite este ano, porque está sempre doente, porque blábláblá… e depois deparo-me com este teu post.
Como fui egoísta durante, pelo menos, o dia de hoje. Eu que conheço a dor, a minha, mas reconheço pouco a dos outros, porque a minha parece sempre maior, gigantesca!
Gosto de te ler! Um beijinho apertado por um abraço.
Inês
http://someotrainbow.blogspot.pt/
Vocês são uma familia muito forte e estruturada!
O A. tem muita sorte com a familia que tem, e sabe que estarão sempre ao seu lado, para o ajudar no que for preciso!
Um beijo enorme em todos ;)
Sou a "Maria"... não me vou esconder... não me posso esconder.
Obrigada por todas as palavras Sofia. Do fundo do coração.
Não sei o que é passar por algo tão doloroso, e espero, como qualquer mãe/pai, não vir a saber... Mas conheço vários casos fruto da minha actividade profissional. A revolta é normal. Não é justo que estas coisas aconteçam, não é. Mas a forma como a maioria dos pais encara a situação, luta e tenta dar a melhor qualidade de vida possível aos seus filhos, tentando a todo o custo manter-se fortes e positivos é incrivel. São pessoas corajosas, à força, mas muito muito corajosas e que eu admiro muitisssimo...
Ao ler palavras assim sinto-me pequenita...!!!
Bolas, que deve ter sido, deve ser e vai ser dose!!! Mas é bem verdade que so temos obstaculos consoante a nossa força e pelas palavras força nao te/vos falta!!!
Parabens pela força! Obrigada pelo exemplo e pelo Amor!
Um beijinho nosso, ja estao na barra dos favoritos! ;)
Nem sei o que dizer... Vamos buscar forças onde elas não existem e que fazemos tudo pelos nossos filhos. Também sou uma mãe à italiana, tenho um filho quase a fazer 3 anos e outro a caminho e só peço a Deus e a todos os Santos para os proteger. Um beijinho desta mãe.
Percebo-te tão bem... em circunstâncias muito diferentes, é certo, mas com muitas limitações no dia-a-dia... também eu tenho o texto pronto... mas não sai... talvez um dia... :)
Está a fazer um ano que nos conhecemos... e desde aí e que, aos poucos, fomos sabendo das histórias uma da outra... e tb desde aí q te digo tantas vezes que tens uma família maravilhosa! E que és uma lutadora!
Não tendo palavras (pq nestas alturas, as realmente certas, que gostaria de dizer, não saem), só te deixo umas palavras do Fernando Pessoas, que tu de certeza conheces, mas que continuo a gostar de ler e descreve mto do que tb é a nossa/vossa vida!
"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta...
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo."
Assim, TU ÉS FELIZ!
E Parabéns por seres assim, pela tua família e, em especial, pelo teu A.
Bjos gr e hoje tb vai um abraço apertadinho! <3
Um grande, enorme beijinho.
Obrigada por mais uma fantástica partilha, daquelas que faz pensar, e muito.
Beijinho**
Querida Sofia, sempre que te leio sobre este assunto, uma mão de gelo aperta-me o coração, tal como naquele dia de Dezembro em que eu soube desta notícia. E que me senti tão frágil para a vida,como mãe, como colega, como amiga.
Rezo para que Deus te continue a dar a força que tens, a ti e ao Afonso.
Queria Sofia,
Não fazia ideia! Acabei de ler o seu post e as lágrimas teimam em cair...já a achava uma mãe linda e maravilhosa mas agora acho que é mais do que isso, acho mesmo que é uma super-mãe com direito a capa esvoaçante!!
Vou lhe confessar que acho os seus filhos todos amorosos e lindos mas sem saber porquê, sempre tive um fraquinho especial pelo seu A...sempre o achei lindo e meigo e cheio de pinta...agora para além disso acho que é também um guerreiro!!!
Gosto de si! Se precisar de um ombro estarei sempre aqui!
Beijo no seu coração de mãe!
Sara
Sem palavras, e sem saber o que dizer.
Grande beijinho.
Fiquei muda e queda... Ah, e chorosa... bolas, bolas, bolas.
Um beijo grande
Shanna e Cª
Um Beijo ENORME ....
Sei na pele o que é sentir isso...e essa incerteza do futuro ...o que é que vai vir....depois de tudo isto que ja passamos....o medo do futuro é mau muito mau.....
beijinhos
Raquel
Querida Sofia
não fazia ideia...
Acabei de ler com as lágrimas a cair
Não é justo, nunca é justo que as crianças sofram
E como deve ter sido e ser horrivel e angustiante
E para a "Maria"
Sinto-me pequenina perante vós e desejo-vos tudo de bom (enquanto olho para dentro e rezo também por nós)
Beijinhos
Oh Sofia, já conhecia a vossa história, mas não consegui evitar as lágrimas. Nem imagino, pelo que passaram, nem vocês, nem a família da Maria. Ao ler as vossas histórias, senti-me pequenina, mas com uma enorme admiração por ti.
Beijinhos
Obrigada a todas. Eu que sou cheia de palavras fico sem saber o que dizer perante os vossos comentários.
Um beijinho verdadeiro em cada uma.
Olá meu nome é Paula Meneghetti e entendo bem o que vc passou com seu filho, pois meu filho ao nascer também sofreu um AVC isquêmico, e por causa da falta de pessoas especializadas a descoberta do AVC demora 4 dias. O diagnostico foi que meu filho não andaria, não falaria, e que talvez ficasse paralisado. Meu filho foi acompanhado durante 3 anos, com fisioterapias, anticonvulsionantes, fono, e exames de ressonância, tomo e outros. Hoje ele tem 5 anos e graças a Deus ele não ficou com sequela nenhuma, mas no ínicio foram anos angustiantes e por isso encontrei uma outra mãe Sandra Avalos, que tem uma filha que tb sofreu AVC e nos unimos e fizemos uma pagina no facebook chamada "AVC em crianças, casos raros, mas reais" e lá temos juntando muitas histórias de crianças que sofreram um AVC, ou seja não é tal raro assim. Já fizemos até um encontro com as mães, foi muito interessante, se quiser visitar a página fique a vontade, pois abrimos pelo proposito de compartilharmos experiências e alertar os pais quanto a isso. Um forte abraço.Caso queria entrar em contato meu e-mail é aluapmaria1@yahoo.com.br
Enviar um comentário