Às vezes encontramo-nos com a
cabeça nas mãos. Tudo o que poderia ter corrido bem correu mal. O mundo, que
era igual à vida, afasta-se de repente. Distancia-se e continua a existir, como
se nada tivesse a ver ou a haver connosco, como se fizesse questão de mostrar a
independência dele, mundo, que não existe só porque nos damos conta dele. A má
notícia é má, mas a pior, para quem cá está, é a pessoal. A minha pessoa é a
Maria João e a Maria João passa mal. Nem o amor nem a sabedoria médica a podem
salvar. Só uma conjunção das duas coisas, mais um acrescento de milagre. O
cabrão do cancro alastra-se. Exterminado no pulmão ou na mama, foge para o
cérebro, onde se refugia e cresce. Forma uma força da morte, aproveitando as
barreiras antigas entre o sangue e o cérebro, que infiltra conforme lhe
apetece. Hoje, domingo, é o último dia em que estaremos juntos, dois amores,
felizes há quase vinte anos. Amanhã, logo às nove da manhã, estaremos na
consulta dos excelentes neurocirurgiões do Hospital de Santa Maria, onde nos
avisarão das complicações possíveis. Obama deveria inspirar-se na perfeição
clínica e humana do serviço de saúde português e francês. Mas a dor não
diminui. Nem a tristeza abranda. Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu
amor por ela, nunca há-de morrer. As coisas acontecem sem acontecer o
pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça são coisas diferentes. Que se
dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando morrem.
Miguel Esteves Cardoso, para a mulher, Maria João, 29.04.2012, in jornal Público
Não o conheço pessoalmente. Mas quem não o conhece? Quem
nunca o leu? Ao meu lado, aqui colada na parede junto ao computador, durante
estes anos todos, tenho uma crónica escrita por ele, uma minimini crónica, que
tem como título 5 de Setembro, o dia
dos meus anos, e com tantas, tantas, tantas coincidências que sempre suspeitei
ter sido escrita para mim (bem, é estranho mas sim).
Não o gosto de ver a sofrer, pelo
seu grande amor. Mas tu sempre soubeste que o amor era fodido, não
foi? O amor, a vida, o destino, o incontrolável. Mau e maravilhoso
simultaneamente.
Sei que há muitos homens a passarem pelo mesmo. Sei que há
muitas mulheres a sofrerem pelos seus homens. Sei que há muitas mães e pais a
gritarem pelos seus filhos. Isto é por todos eles. Por todos nós.
Sei que ela já foi operada, a sua Maria, e que foi para
casa. Sei que vai ser difícil, muito, muito difícil vencer esta guerra.
E tu escreveste(me): O pior é que sempre que te vais embora,
levas a minha vida contigo.
Espero, Deus, que ainda não a
leves. Porque há amores assim. E sim, por amor se vive e por amor se morre.
Pós - operatório
“Voltámos para casa anteontem [sexta-feira],
nesse dia sagrado. Não há no mundo maior delícia do que a normalidade. Cada
palavra da Maria João soa-me a música amada. Nos livros avisam que a remoção de
tumores cancerosos do cérebro pode provocar alterações de personalidade.
9 comentários:
:')
No meio da merda que é o cancro, esta mulher tem uma sorte imensa por ser amada desta maneira! Que Deus não a tire ao seu Amor e que eles possam morrer bem velhinhos e juntos!
Por um lado parece que ainda custa mais por isso mesmo. Bolas, isto não devia acontecer a quem encontrou a sua metade, a quem é amado assim. Por outro lado, paradoxalmente, ainda bem que acontece a quem chegou a ser amado assim.
Mas é f#$% na mesma.
Que doença maldita... Dia 31 deste mês faz 2 anos que levou uma prima minha de 35 anos, um tumor no cérebro inoperável... Num ano esqueceu quem era, quem amava, quem era a família, como falar. Telefonava-nos e ficava calada, e quando perguntávamos o que estava a fazer, se estava tudo bem, onde estava, etc. dizia "não sei". Uma tristeza... :( Bjs
(Ai Duchess, puseste-me a chorar...)
Olha ia escrever, mas nem sei bem o quê!Mais vale estar calada e ler este Amor ...
Já tinha lido estas crónicas dele, e são de um amor inabalável, espero mesmo do fundo do coração que o amor vença o maldito cancro, porque ainda há milagres.
Beijinhos
Um amor destes não morre com nada! Vive para além da própria vida e faz as pessoa superarem-se na dor. Há muitos amores assim, mas há pouco quem os descreva como o MEC
Não há palavras para o que o MIGUEL ESTEVES CARDOSO escreve
bjinhos
Apesar de todo o sofrimento deste casal, é maravilhoso ler-mos palavras tão apaixonadas e carregadas de amor!
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