(entrevista tripartida concedida a Júlia Pinheiro)
- Existem estudos que
apontam um aumento da taxa de divórcio após um período de férias. De
acordo com a sua experiência, concorda?
Porquê? Quais as razões?
- Na Dinamarca,
segundo publicado recentemente, os casais que se pretendem separar serão
obrigados a esperar pelo menos 3 meses e a frequentarem terapias de casal.
“Trata-se de reduzir os danos humanos e
financeiros do divórcio, justifica Gert Martin Hald, psicólogo e professor de
saúde pública da Universidade de Copenhaga, que ajudou a conceber as sessões de
terapia obrigatórias”, cita um artigo da Visão.
Isto faz-lhe sentido? Faria parte de uma
equipa como esta, em Portugal?
- Quais as grandes
mais-valias da terapia – o que fazemos na terapia que não conseguimos
fazer, em casal, em casa?
- Este projeto da
Dinamarca visa diminuir o custo económico dos divórcios. Além deste custo,
psicólogos dizem que o divórcio é dos momentos mais stressantes da vida.
Concorda?
- Pode contar-nos um
caso que tenha acompanhado e que tenha superado a sua crise com terapia?
Pode apresentar-nos o casal, contando alguns detalhes – protegendo a
privacidade, claro.
- Qual é o segredo dos
casais felizes?
1 - Faz sentido, sim! Por um lado,
olhamos para as férias ou para o período pós-férias como o início de um novo
ciclo, dado que a nossa vida e a dos nossos filhos é mais marcada pelo ano
escolar do que pelo ano civil. Setembro
é como se se tratasse, de facto, de uma nova fase, de um novo re-começo. Daí
que apareçam nesta altura mais pedidos de divórcio e também, simultaneamente,
mais pedidos de terapia de casal.
Há ainda uma outra questão a ter
em conta. As férias, apesar de tão desejadas, acabam por ser uma altura de
crise, em muito devida ao tempo que o casal passa junto, situação que
normalmente não é habitual. Embora nos queixemos sempre que os empregos nos
consomem, a verdade é que o trabalho é um escape para os problemas familiares,
que ficam ali em standby durante muito tempo, ou seja, numa espécie de adormecimento,
que as férias faz despertar. O casal, tanto enquanto par conjugal, como
enquanto par parental, não está, na maioria das vezes, habituado a gerir esse
tempo, o que pode realçar as dificuldades comunicacionais e as dinâmicas
empobrecidas em que vive como casal e como família.
Conheço casais, dentro e fora do
âmbito terapêutico, que desabafam a sua contrariedade de não terem internet nas
férias. Falta-lhes a hipótese de triangular com o que lhes é habitual:
trabalho, televisão, telemóvel, etc., - e assim este tempo que deveria ser
feliz, porque devia fortalecer laços é, por vezes, sentido como uma grande dor
de cabeça. Há mais tempo livre e muitas vezes não sabemos o que fazer com o
tempo que temos.
2 – Parece-me importante a
intervenção antes do divórcio, mas o que eu gostava mesmo de integrar era uma
equipa de prevenção e não de intervenção. Não temos por hábito trabalhar antes
de o “mal estar feito” e ganharíamos muito com isso. Um processo de ajuda com
jovens ou menos jovens que decidem casar, ou seja, um projeto pré-nupcial, não seria
mais proveitoso e, aí sim, com menos gastos, a nível económico e menos perturbações
a nível da saúde mental? Aprender a viver com alguém não é fácil e só se
procura ajuda quando já é muito difícil alterar padrões comportamentais, quando
o amor se desgastou, quando as formas de pensar rigidificaram. Esse projeto da
Dinamarca parece-me mais uma espécie de terapia do divórcio ou mediação
familiar, para que haja mais divórcios por mútuo consentimento, para que o casal
se consiga separar o mais amigavelmente possível e de forma mais resiliente, o
que também é fundamental.
3-Na terapia há alguém a mediar,
há alguém que tem um olhar mais neutro, menos enviesado e sobrecarregado sobre
as vivências do casal. É como se fosse sangue fresco. Esse alguém vê de fora e
consegue, por isso, ter uma visão mais sistémica das dificuldades e potencialidades
do casal. Para além disso, se casal é o
perito na sua vida, o terapeuta é o perito no processo terapêutico e sabe como
questionar, como desafiar e como pôr a
pensar; sabe como pedir algumas mudanças. Em terapia, lado a lado com um
terapeuta, o casal muitas vezes aceita tarefas, fora ou dentro da sala de
consulta, o que em casa e “per si” não fariam, fosse por teimosia ou por acharem
que não eram capazes ou que não lhes fazia sentido. O facto de estarem perante
alguém que eles consideram um especialista, ajuda muito no processo
terapêutico.
4- Sim, sem dúvida. Um divórcio é
um dos grandes momentos de crise do casal. São planos de vida, muitos projetos
que chegam ao fim. Todos os envolvidos sentem que falharam e é preciso
trabalhar muito bem a questão das responsabilidades partilhadas, da
auto-imagem, da auto-estima, das dependências, das redes de suporte…
Já agora gostaria de dizer que
casar ou ter filhos, por exemplo, constituem também momentos muito stressantes.
A crise está associada ao stress que
esses momentos, essas etapas acarretam. São, sem dúvida, mudanças grandes, para
um estádio diferente. Muitas vezes só associamos o stress a uma carga negativa, mas há muitas crises, ditas positivas,
que mexem muito connosco, porque mudar dói, aflige-nos, põe-nos em causa
enquanto seres humanos, cônjuges ou pais. Mesmo que essa mudança seja muito
desejada.
Agora vamos imaginar o que é
mudar para algo que não queremos. Há casais que ficam paralisados nessa dor e
não conseguem avançar. E, por vezes, com medo da mudança não se separam, mas
também não procuram ajuda para que ainda possam continuar juntos. Assim, a vida
anda sem andar, muda-se sem mudar e, é claro, que isto não é uma solução.
5– São várias histórias, várias
vidas que já me passaram pelas mãos e que tive a honra de poder ajudar. Fica
difícil escolher só uma.
Há situações, como a da infidelidade,
que são muito difíceis de gerir. Tem de
haver uma enorme vontade da parte de ambos de ficarem juntos, uma enorme
vontade de perdoar e seguir em frente, sendo o amor o que os liga e não desejos
de vingança ou o medo de ficar sozinhos. É preciso trabalhar a confiança,
restaurar a confiança, pôr uma grande ênfase no compromisso (tal como a terapia
em que os alcoólicos se comprometem a não beber). É preciso praticar o letting go. Não é esquecer, é assumir
que se quer continuar um projeto de vida e que o que aconteceu não pode servir
como arma de arremesso.
Quem é traído sofre horrores,
mas, paradoxalmente, passa a ter um poder na relação que não tinha até aí.
Todas as brigas vão parar a essa traição, tenham ou não tenha a ver com isso.
Mas, este poder tem de ser re-equilibrado.
É certo que a maioria dos casais
procura terapia praticamente logo que descobrem a traição. Contudo, lembro-me
de um casal que só iniciou a terapia 15 anos depois do episódio de traição. O
pé de chumbo do passado não os deixava seguir em frente, impedia-os de serem felizes.
E cada vez que havia um problema sobre quem fazia as compras para a casa, sobre
quem levava o lixo à rua, rapidamente entravam numa escalada que ia parar ao
que tinha acontecido 15 anos antes, que nunca tinha sido realmente ultrapassado.
Foi preciso algum tempo para que falassem durante a sessão, ventilassem todos
os sentimentos, até que se chegou ao perdão e ao compromisso de deixar o
passado no passado. Foi preciso focalizarmo-nos no presente e no futuro.
Aprenderam que discutir podia ser saudável, desde que aprendessem a discutir de
forma justa, onde um dos pontos essenciais era restringirem-se ao assunto da
discussão, mesmo que tivessem muita vontade de ir buscar o que tinha ficado lá
atrás.
Lembro-me ainda de outra
história, em que o casal estava por um fio devido à intromissão das famílias de
origem. Muitas vezes esquecemo-nos que quando casamos, não casamos apenas com
aquela pessoa, mas com a sua família também. São novos laços que se criam,
muitas vezes de uma forma quase instantânea.
A relação entre sogra e nora
realmente perturbava a relação do casal. Havia um marido, que ao mesmo tempo
era filho e permitia que a mãe interferisse em demasia na relação conjugal. Foi
muito importante trabalharmos limites,
construirmos um nós conjugal e trabalharmos as lealdades divididas –
este senhor sentia que se defendesse a esposa estava a ser “infiel” à mãe. Era
preciso criar então o tal modelo de conjugalidade. O casal teria de ceder um
pouco o seu espaço e abrir-se à entrada dos sogros na sua vida, mas também fechar-se,
em certos momentos, como uma ostra, para que pudesse ter as suas regras e o seu
próprio tempo apenas a dois.
Usámos uma ferramenta muito útil
que foi o genograma, que é uma espécie de mapa, um utensílio visual que permite
ver o lugar de cada um na família e as relações que se estão a estabelecer, que
podem reforçar ou prejudicar a conjugalidade. Este genograma foi feito com o
casal e só de o fazerem e visualizaram tiveram logo uma imagem muito mais clara
do que estava a acontecer. De facto, relações presentes e passadas afetam sem
dúvida a forma como o casal vive a sua conjugalidade.
Perceber o que se passava estava
percebido, mas agora era preciso passar à ação e sem mudança de comportamento
não haveria uma verdadeira mudança. Um momento chave do processo terapêutico
foi quando os sogros foram convidados a participar numa sessão. Com a ajuda do
terapeuta conseguiu falar-se de fronteiras, limites, de espaço, de áreas comuns
e de áreas afetas apenas ao casal. Foi importante mostrar que algum
distanciamento era necessário e não significava falta de amor ou de respeito
pelos pais. Os próprios sogros falaram da relação que tiveram com os seus
sogros. Muitas vezes focamo-nos em algo particular e esquecemo-nos de ver o
quadro geral. Levaram como metáfora que o cordão umbilical é preciso ser
cortado várias vezes ao longo da vida, mas que nenhum amor substitui outro.
6- Quem me dera que houvesse uma
fórmula mágica para fazer os casais felizes. Ou quem me dera que fosse assim
tão simples. Mas esta questão, quanto a mim, é mesmo uma faca de dois gumes.
Quando começamos, enquanto terapeutas, a achar que os casos ou os clientes são
todos iguais, ou que a fórmula de resolver os seus problemas é idêntica,
deixamos de ser os terapeutas que poderíamos ser. Deixamos de ouvir as pessoas
com curiosidade genuína, como se cada caso fosse, de facto, único. E quanto a
mim é isto que deve passar cá para fora: cada caso é único, com as suas
particularidades, diferenças e idiossincrasias. E neste caso tenho de dizer que
não há uma fórmula mágica.
Agora, há, de facto, algumas
dicas que podem ser seguidas, que podem ajudar a que os casais não cheguem ao
ponto de rutura, que é como muitas vezes chegam quando vêm pedir ajuda.
Começo por dizer que, muitas
vezes, são mais saudáveis os casais que discutem do que os que não discutem.
Calma, discutir não é gritar, não é ofender, nem magoar, não é fazer drama.
Mas, de facto, há casais que não discutem porque têm um medo enorme da perda de
controlo. Vivem sob o mito de que casais felizes não discutem, estão sempre de
acordo, o que leva a uma espécie de autofagia. As discussões são engolidas, os
descontentamentos são engolidos e isso pode gerar problemas psicossomáticos ou,
quando estoirar, levar mesmo ao fim da relação. É preciso discutir sobre nós,
sobre objetivos de vida, sobre planos, sobre prioridades e, inclusivamente
sobre quem faz o quê em casa. Sem discutir instala-se um vazio que à primeira
vista parece ser confortável, mas que corrói por dentro. Não discutir com medo
da rutura, infelizmente leva muitas vezes a essa mesma rutura.
Por outro lado, quando discutimos
estamos a dizer ao outro “Tu estás errado. Ouve o que tenho para te dizer, vais
mudar de ideias”. Isto significa que ainda nos preocupamos com o outro, com o
que ele pensa, sente e diz. O silêncio é uma das mais perturbadoras distorções
da comunicação humana. É olhar para o outro e não o ver, é como se se passasse
a mensagem “Já não quero saber o que pensas; já não significas nada para mim”.
Portanto, um casal mais feliz é o
que fala, o que discute ideias, que comunica, que não fala só de conteúdos, mas
da própria relação, que tem tempo para se ouvir, que arranja tempo para o “nós”.
Os casamentos dão luta, têm de
ser alimentados e trabalhados. Já tive alunos meus, futuros psicólogos, que
diziam que se dá trabalho é porque não é o tal. A esses peço desculpa de tirar
toda a visão romantizada dos casamentos e das relações, mas qualquer relação
importante na nossa vida dá trabalho. Nada que nos acontece é um dado adquirido
e muitas vezes, só depois de algum tempo com determinada pessoa, a vemos tal
como é.
Numa relação têm de haver
cedências, equilíbrios, limites, empatia, tem de haver espaço para o nós, ou
seja, para o casal enquanto entidade, mas também para cada um dos elementos do
casal, porque têm personalidades distintas e porque devem ter uma vida para
além do nós. Também há casais, por estranho que possa parecer, que estão juntos
e nunca construíram o nós conjugal. Têm amigos diferentes, hobbies diferentes e
não há nada que gostem de fazer juntos. Haver espaço para o eu, o tu e o nós é,
a meu ver, um bom prognóstico para um final feliz.
E tanto haveria para dizer! Eu aconselho
sempre a qualquer casal que se riam um com o outro. Casais mais felizes são os
que riem juntos. Façam surpresas, arranjem tempo e relativizem as discussões –
pensem sempre que num casamento, se um perde, ambos perdem.
Experimentem a fazer um círculo,
uma espécie de pizza com várias fatias. O tamanho da fatia é o tempo “gasto”
naquela relação: trabalho, filhos, amigos, comunidade, cônjuge. Qual é a fatia
mais pequena de todas? Muitas vezes ficamos surpreendidos quando percebemos que
é com a nossa cara metade que passamos
menos tempo, do dia, da semana, do mês. E
pior ainda, muito desse tempo serve para falar das questões do dia a
dia, do dinheiro, dos filhos…e não sobre si, enquanto casal. No tempo de namoro
havia bilhetes e mensagens e surpresas…para onde é que isso foi?
Aproveitem as férias para
colocarem em prática algumas destas sugestões. Quem sabe se este passar mais
tempo juntos não poderá ter agora outro sabor? Quer ter sempre razão ou ser
feliz? É a pergunta que lhe deixo em jeito de despedida.