Por mais que saiba que há coisas muito piores, não consegue deixar de se sentir ainda magoada, revoltada, impotente, agredida. Chora pelas filhas e com as filhas. Principalmente em dias mais cinzentos e difíceis. Em dias de maior cansaço.
A Mara e o marido passaram de 2 para 4, numa assentada só. E a vida tão pacata bem depressa se encheu de barulho e de gente, tanta gente, gente a mais...mas paradoxalmente parece que demorou uma eternidade a aparecer esta gente toda nas suas vidas - pediatras, terapeutas da fala, educadoras, psicólogos e especialistas em autismo.
Ouviu o diagnóstico e não ouviu mais nada. Aliás, não se consegue lembrar de metade; do resto, só se lembra da palavra autismo lá pelo meio.
Sentiu o mundo a girar depressa demais, a ficar sem chão e, imaginando o pior, perspectivou todas as desgraças num futuro negro e medonho.
Como num completo lost in translation, a Mara sentiu como se estivessem a falar numa língua estrangeira. Estavam a falar delas, das suas meninas. E ouviu o que não queria, o que não estava à espera de ouvir, o que não estava preparada para ouvir. De maneira nenhuma.
Pensava mesmo que só ia a uma simples consulta de desenvolvimento - só medir, pesar e pouco mais (sim, porque era só mais uma consulta igual a tantas outras a que já tinha ido com elas, por serem gémeas, por serem prematuras).
E de repente apercebeu-se que não estava minimamente preparada para algo assim e ainda chegou a pensar "a médica enganou-se, claro, e eu vou provar..."
Voltou a perder-se nos seus medos quando ouviu as palavras "necessidades educativas especiais" e naquele maldito rótulo que se cola à pele, que quase asfixia.
Foi em Agosto de 2010 e obviamente que para este casal, para esta família, nada mais seria igual.
Fizeram a promessa de desmistificar os palavrões "autismo" e "deficiência". E fizeram também a promessa de amar aquelas meninas mais do que a tudo no mundo e de educá-las exactamente da mesma maneira que a qualquer outra criança.
Mas custa, custa sempre, custa muito, muitíssimo, horrores. Custa ainda mais por ter sabido sempre, bem lá dentro de si, que havia algo de errado com o desenvolvimento das suas pequeninas. Uma gravidez complicada, um pós-parto muito doloroso e muitas consultas de desenvolvimento de gémeos e os pediatras sempre a dizer para não se preocupar, que estava tudo bem. E foi pondo de lado sinais e chegou a achar que estava a ver demais, que estava a ser paranóica, a criar fantasmas que não existiam. Não confiou no seu instinto de mãe, para confiar nas palavras dos especialistas.
É tão grande a dor que sente por terem passado 3 anos, 3 longos anos, e não lhe terem dito nada. Aliás, diziam. Diziam que cada criança tem o seu ritmo, que não se podia comparar o desenvolvimento das crianças e que estava tudo bem. Tudo bem.
Mas... e quando ela as via a crescer a brincarem por filas, a encaixarem tudo em segundos, a comerem por cores ou texturas; quando as via a crescer sem falarem, e quando o faziam apenas usavam a ecolália para se exprimirem, sem conseguirem controlar o que sentiam, quando se auto-agrediam... Era típico? Era normal?
E chegou-se a falar em sobredotação porque falavam em inglês uma com a outra, porque eram super despachadas, tão viradas para si e para o seu mundo. Tão delas. Tão só delas.
"Cada criança tem o seu ritmo, isso passa". A Mara não suporta esta frase.
Foi preciso sofrerem tanto, foi preciso vê-las a agredirem-se vezes sem fim, a ponto de ficarem sem cabelo. Foram precisos três anos, três longos anos.
A Mara confessa que, no meio de todo o sofrimento, fica feliz por ser um autismo considerado ligeiro, embora as rotinas familiares e a mudança nas suas vidas não tenha tido nada de ligeiro, no way. Curioso, como a memória se fixa em detalhes... recorda-se perfeitamente do gabinete do velho hospital onde recebeu a notícia e os olhos meigos de quem teve de ser o mensageiro do infortúnio.
A vida mudou. Depois disto não se pode ficar igual.
Vive para elas e concentrou-se em lutas que nunca pensou travar.
Não fez as pazes com o diagnóstico e não lida bem com os preconceitos, com a incompreensão, com a ignorância alheia.
Cada dia é um novo dia, de trabalho, de luta, de amor, de muito amor.
Em resposta à pergunta "Se o autismo pudesse ser diagnosticado numa ecografia ou amniocentese, abortaria?" responde em rajada - NÃO. E acrescenta, "Amo tanto as minhas filhas, mais do que se possa imaginar. Tanto que quase me falta o ar. São autistas, mas são sobretudo crianças e são saudáveis. E são, sem dúvida, felizes, muito felizes".
Obrigada Mara, obrigada T2para4 por toda a coragem, pela partilha, por darem a cara. Obrigada.